quinta-feira, 18 de agosto de 2005

A noção de Hermenêutica

Adquiri, recentemente, a espantosa obra de Jean Borella, Ésotérisme Guénonien et Mystère Chrétien (Delphica - L'Age d'Homme, Lausanne, Suíça, 1997), de onde retiro este pedagógico apêndice, intitulado "A noção de Hermenêutica".

A NOÇÃO DE HERMENÊUTICA

A hermenêutica constitui hoje um "lugar filosófico" maior; [mas] nem sempre foi assim. Tradicionalmente, os teólogos católicos chamam «hermenêutica» à «arte que traça as regras da interpretação das Sagradas Escrituras», e «exegese» à «aplicação destas regras» (2). A palavra hermenêutica é um adjectivo substantivado que transcreve o grego herméneutiké (s.e. tekhné): (arte) da interpretação (3). Deriva do verbo herméneuein que significa «interpretar», «explicar», e que faz referência a Hermes, o intérprete e o mensageiro dos Deuses, o mestre dos segredos da palavra e do poder dos signos, cujo nome se aproxima de herma que designa todo o objecto que serve de ponto de apoio ou de marca de referencial, em particular nas pedras levantadas, eventualmente itifálicas, o que não deixa de ter relação com o lingam de Shiva, palavra que, em sânscrito, significa «signo». Hermes é filho de Zeus e da ninfa Maia (4), do mesmo modo que Ganesha («Senhor» = îsha das «categorias» = gan) é filho de Shiva e de Pârvatî; ambos são «logotetas», reveladores celestes dos signos da palavra e da escrita, das ciências e das artes. Na revelação cristã a função de Hermes é atribuida a São Paulo que é assim designado pelos habitantes de Listra «porque ele trazia a palavra» (5). Únicos de entre os Padres [da Igreja], Orígenes e Santo Agostinho elaboraram precisamente uma "teoria geral" da hermenêutica (6), sem todavia "nomear" esta mesma ciência. Nos latinos, fala-se correntemente de interpretatio, de intelligentia, expositio, explicatio, explanatio, enarratio, commentarium, lectio, etc., mas jamais de hermeneutica. Mesmo quando os escritores católicos tiveram necessidade, na época da Reforma, de redigir tratados específicos de hermenêutica bíblica, eles não empregaram o termo, nem em latim (o termo preferido é o de interpretatio), nem em francês (onde se emprega sobretudo «explication» ou «intelligence» da Escritura). De centro e trinta e sete tratados católicos de exegese recenseados entre 1528 e 1900, apenas contámos quarenta e quatro (ou seja, menos da terça parte) que trazem no seu título a palavra hermeneutica, que apenas aparece pela primeira vez em 1751: De verbo Dei scripto et tradito seu Introductio in hermeneuticam sacram utriusque Testamenti, de Corbinien Thomas (Salzburgo). Por outro lado, de oitenta e dois tratados protestantes, entre 1567 e 1900, encontramos quarenta (ou seja, perto da metade) cujo título contém «hermenêutica», o primeiro surgido em 1654: Hermeneutica sacra, de J. C. Dannhauer (Estrasburgo). O uso do termo vem então incontestavelmente dos protestantes desejosos de se demarcar da terminologia latina demasiado católica usando uma palavra grega. Contudo, ele impôs-se nos próprios católicos que acabaram por a integrar no vocabulário técnico da teologia e que lhe deram um lugar ao lado do termo consagrado de «exegese», o qual designa em suma a hermenêutica em acto: deste modo Leão XIII, na sua encíclica sobre a Escritura santa, Providentissimus Deus [7], fala das «regras da hermenêutica». Em francês, o adjectivo «hermenêutico» foi registado num dicionário pela primeira vez em 1777 no Supplément da Encyclopédie de Diderot e de D'Alembert. Quando ao substantivo, aparece em 1852 no Manuel d'herméneutique biblique de Cellérier, publicado em Genebra.
Estes dados históricos (8) mostram que o emprego da palavra «hermenêutica» é correlativo da elaboração do conceito de uma ciência especial de interpretação bíblica. Um tal conceito deveria atrair a atenção dos filósofos sobre o acto de interpretar enquanto tal: que fazemos nós quando lemos um texto, bíblico ou não? É o filósofo e o teólogo protestante, Schleiermacher que, em primeiro lugar, formula a exigência de uma hermenêutica geral (1819): «Não existe uma hermenêutica geral que seja uma arte de compreender, existem [apenas] diversas hermenêuticas especiais» (9). Este tema será retomado pelo seu longínquo discípulo Dilthey que o desenvolverá num método geral das ciências da cultura (em alemão as «ciências do espírito», Geisteswissenschaften): Origem e desenvolvimento da hermenêutica (1900) [10]. A partir de Dilthey, com Husserl e sobretudo Heidegger, a reflexão filosófica sobre o acto de interpretar, ou seja, o acto pelo quando nós conferimos tal significado, não só a tal elemento cultural, mas ainda a todos os dados da nossa existência, adquire a sua maior generalidade: o homem não regista apenas os factos, ele compreende-os e interpreta-os como os signos de um certo sentido da existência; aqui, a hermenêutica identifica-se à própria filosofia. Cremos todavia, com Gadamer e Ricœur, que não há «hermenêutica do dasein [11]», de interpretação fundamental da experiência de existir, que não seja informada por uma certa tradição cultural, a qual, para nós, apela necessariamente a uma revelação. A compreensão de si mesmo e do mundo, a «leitura» que fazemos da vida e das coisas efectua-se sempre sobre a base e com a ajuda das chaves da tradição simbólica universal.

(1) Jean Borella, op. cit., pp. 34-35.
(2) Pe. Berthier, Abrégé de théologie dogmatique et morale, E. Vitte, 1927, n.º 214.
(3) Platão, Política, 260d.
(4) Hinos homéricos, Mercúrio, I, 1.
(5) Actos dos Apóstolos, XIV, 12.
(6) Tratado dos Princípios, IV, 8-27; Da doutrina cristã, II e III.
[7] de 18 de Novembro de 1893 (N. T.).
(8) Cf. o artigo «Herméneutique» de E. Mangenot, no Dictionnaire de la Bible de Vigouroux, tomo III, 1903, col. 612-633.
(9) Hermeneutik, editado por Kimmerle, Academia das Ciências e da Cultura de Heidelberg, 1959, p. 79).
[10] Em alemão, Die Entstehung der Hermeneutik (N. T.).
[11] Palavra alemã cujo significado é o de "existência". Contudo, com o filósofo Heidegger, a palavra adquiriu um significado filosófico próprio (N. T.).

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