terça-feira, 16 de agosto de 2005

Qual é o problema do Criacionismo?

(reprodução do texto publicado no Afixe)

O que se segue, como não podia deixar de ser, é um texto de opinião, visto que não me considero entendido nas matérias em questão.

As posições tomadas por George W. Bush, nos E.U.A., relativamente ao ensino do intelligent design nas escolas a par com as doutrinas evolucionistas têm gerado imensa polémica.
Muitos evolucionistas surgem ao ataque, agitando as suas espadas em nome da Ciência, contra o que chamam de "obscurantismo medieval", ou seja, o criacionismo.
A histeria, como se sabe, nunca é boa a ajuizar em matérias tão difíceis. Antes de mais, tenho que dizer que, sendo católico, e tendo pensado muito no assunto, opto por uma forma específica de criacionismo. A mais elementar obediência à doutrina católica deveria ter-me levado a assumir, imediatamente, a defesa dessa tese cosmológica. Contudo, parece-me sempre proveitoso que se medite sobre estas questões, de modo a que o crente tome uma decisão, que não obstante ser de fé, seja maturada e ponderada.

Ponhamos as duas teorias (e sublinho a palavra teorias) lado a lado, de forma muito sucinta:

- o Evolucionismo: não obstante os inúmeros ramos evolucionistas, e a grande disparidade de correntes que existem, parece-me razoável definir o evolucionismo como uma tese que se sustenta em dois pontos essenciais, que devem jogar em conjunto para o sucesso da teoria:

a) a Selecção Natural, devida a Darwin, como forma de filtrar a aptidão para a sobrevivência de uma dada espécie; as espécies menos preparadas desaparecem, as mais bem preparadas sobrevivem e multiplicam-se

b) as mutações genéticas como justificação para a variedade de espécies; ao longo de muitos milhões de anos, a alteração por mutação do património genético de uma espécie (ADN) faria dela uma outra espécie

- O Criacionismo: também uma posição matizada, feita de inúmeras correntes, que advoga, para justificar a variedade das espécies de seres vivos, a acção inteligente de uma entidade superior, que se poderia definir como divina e criadora.

Nos E.U.A., temos assistido recentemente ao surgir de inúmeros movimentos criacionistas, que atacam ferozmente o evolucionismo. Vejamos o que é defendido nas mais importantes modalidades do criacionismo:

a) há os que advogam que o Génesis e as Sagradas Escrituras devem ser lidas à letra, defendendo deste modo que a Terra não teria mais do que alguns milhares de anos; seguem a cronologia do Arcebispo de Armagh (Irlanda), James Ussher, que no século XVIII elaborou uma estrutura de datação para a Terra, afirmando que a Criação se dera no ano de 4004 a.C.

b) há os que, afirmando-se cristãos, concordam com a generalidade, senão mesmo a totalidade, da teoria evolucionista; defendem que a evolução, a par com a selecção natural darwiniana, são processos intencionais criados por Deus para guiar o devir do mundo natural

Há ainda inúmeras outras formas de ver o criacionismo que não professam necessariamente a ideia de que a Terra é recente, ou a ideia de que o Génesis deve ser lido com os olhos do Homem do século XXI, e não obstante manifestam-se altamente críticas, não tanto da Selecção Natural mas sobretudo da evolução das espécies por mutações.

Encontro-me nesta última categoria, e foi precisamente o facto de eu achar que este tema anda a ser discutido de forma altamente falaciosa, imperfeita e política que me atirei para a frente com a ideia de lançar este tema aqui no Afixe.

Certos evolucionistas rejubilaram quando, há uns anos a esta parte, o Papa João Paulo II afirmou que a evolução era mais do que uma hipótese. Para eles, era o sinal de que a Igreja Católica dava luz verde ao evolucionismo. Com a subida do Cardeal Ratzinger ao trono papal, muitos demonstraram a sua revolta por aquilo que julgavam ser um retrocesso num suposto "amén" católico ao evolucionismo.
Nada disso.
O actual Papa Bento XVI está em total sintonia com João Paulo II neste aspecto. O evolucionismo é mais do que uma hipótese: é uma teoria científica. A selecção das espécies não contradiz a razão natural nem o mais elementar bom senso. As espécies mais bem adaptadas sobrevivem, e outras menos adaptadas morrem.
As recentes declarações do Arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, geraram mais uma onda de contestação mediática. Vemos que as palavras deste Arcebispo evidenciam claramente a necessidade dos esclarecimentos que o seu texto traz.
Schönborn diz, com muita razão, que muitos evolucionistas deram uma interpretação equivocada às palavras do Papa João Paulo II. O Papa João Paulo II, numa audiência datada de 10 de Julho de 1985, pronunciou sólidas palavras sobre esta matéria. Em suma, o Santo Padre afirmava:

«A evolução dos seres vivos, de que a ciência procura determinar as etapas e discernir o mecanismo, apresenta um finalismo interno que suscita a admiração. Esta finalidade que orienta os seres numa direcção, da qual não existem padrões nem responsáveis, obriga a supor um Espírito que seja o seu inventor, o criador.»

Estas palavras prudentes demonstram que o Santo Padre não se pronunciou fora do campo da sua competência, deixando à Ciência o trabalho árduo de discernir o mecanismo do devir dos seres vivos. O que não está aqui, e que nunca foi defendido pela Igreja Católica, é um aval ao neo-darwinismo, a defesa da ideia peregrina de que a inteligência surge nos seres vivos por milhões de anos de mutações ocasionais e aleatórias. No limite, mesmo sendo possível demonstrar que as mutações genéticas permitem a multitude de espécies conhecidas (extintas ou não), a doutrina católica mostra-se clara num ponto fundamental: a matéria não engendra o intelecto.

Importa salientar que, no debate de ideias, há sempre espaço para uma certa dose de fé. Senão vejamos: ninguém discute a presença desta dose de fé no lado criacionista. Contudo, poucos a reconhecem no lado evolucionista.
Nos meus tempos de Universidade, trabalhei com ferramentas matemáticas que dão pelo nome de Algoritmos Genéticos. O bonito nome pode gerar equívocos, pelo que importa explicar sucintamente o que são e para que servem.
Os algoritmos genéticos são uma das muitas metodologias de resolução de problemas matemáticos. Antes de principiar um algoritmo genético, há que ter duas coisas (que me desculpem os especialistas por esta apresentação mutilada e simplista):

1. Uma heurística que codifique numericamente uma solução para o problema; sem esta codificação (dita "genética"), a solução não pode ser trabalhada algoritmicamente

2. Uma função de custo, que avalie o valor de uma dada solução. Esta função de custo será o juíz, que dará uma pontuação (numa escala pré-definida) a cada solução do problema

Como evolui o algoritmo?
Evolui sensivelmente da mesma forma que, segundo os evolucionistas, o mundo vivo teria evoluido desde os primórdios:

a) parte-se de um conjunto aleatório de possíveis soluções para o problema, todas colocadas em pé de igualdade, e todas codificadas da mesma forma; o ingrediente elementar de cada solução é chamado de "gene", e é um valor numérico que pode ser modificado

b) mutações ocasionais (alterações na codificação das soluções em jogo) permitem o surgimento de novas possíveis soluções; a função de custo avalia as novas soluções: as menos pontuadas vão para o fim da lista (e podem mesmo ser eliminadas); as mais bem pontuadas ascendem na tabela de pontuação.

Ao fim de muitos passos, com maior ou menor dosagem de mutações, o algoritmo produz a "melhor" solução, extraída por pontuação do conjunto inicial aleatório de soluções.
Isto funciona!
Contudo, não se pode aplicar este raciocínio ao ADN dos seres vivos. Porquê? Há várias razões, mas sublinho estas:

1. O património genético de um ser vivo é composto por milhares de genes e é tipicamente muito estável; o ADN reage, muitas vezes, a mutações que num algoritmo numérico poderiam ser desastrosas, mas que no mundo real podem não ter consequências graves para o ser vivo: a Natureza defende-se das mutações

2. As mutações na Natureza são um fenómeno raro, de carácter aleatório, e que apenas pode ser trabalhado probabilisticamente. Num algoritmo, podemos dosear a quantidade de mutação, e é só uma questão de tempo e de processador para que o algoritmo produza uma solução boa. Mas a Natureza não funciona assim, e confesso que vejo a necessidade não de um, mas de vários milhões de milagres para que, ao longo de tanto tempo, e parodiando, uma amiba dê origem ao Homem, tudo apenas com mutações genéticas.

Por tudo isto, penso que o evolucionismo tem um lado aceitável (a Selecção Natural, que pode encerrar em si mesma uma parcela da verdade sobre o devir das espécies), e um lado questionável (a evolução por mutações).
Questionar o evolucionismo é tarefa de qualquer pessoa séria que se debruce sobre este problema. Aliás, em Ciência, questionar é A TAREFA. Como eu gostaria de ver nestes tempos as mentes mais brilhantes debaterem estes temas sem entrarem na infantilização do adversário e sem entrarem em jogadas políticas de ataque à religião.

O criacionismo existe há milhares de anos no mundo Ocidental. Estruturas teóricas cosmológicas semelhantes encontram-se no pensamento oriental. A metafísica e as formas de ontologia de origem divina acompanharam o pensar humano desde sempre. Não faz sentido menosprezar o imenso peso intelectual dos defensores do Criacionismo. E muito menos tentar transformar os delírios intelectuais com que os E.U.A. nos costumam brindar, nestas e noutras matérias, na regra geral aplicável a todos. A forma como concebo o criacionismo é muito diferente da da maioria dos criacionistas norte-americanos.
Fica para uma próxima oportunidade alongar-me mais sobre isto.

Para terminar, uma ideia fundamental: o criacionismo é uma tese que não pode ser tratada pelas ferramentas da ciência moderna. É esta uma das razões principais para o aprofundar de toda esta incompreensão. Pelo facto de recorrer a causas metafísicas, e portanto supra-empíricas, o criacionismo é sobretudo uma corrente filosófica. O criacionismo estabelece uma causa sobrenatural para efeitos naturais. O evolucionismo, pelo contrário, e também legitimamente, procura essa mesma causa na própria natureza.
Duas metodologias diferentes que teriam que, naturalmente, conduzir a duas teorias diferentes.
Qualquer "dogmatismo científico" nesta área só pode ser estéril. Se eu fosse um cientista adepto do evolucionismo não me preocupava com os criacionistas: não há base científica para demonstrar o criacionismo. Contudo, as coisas também não estão fáceis para o evolucionismo, uma vez que a base científica de demonstração é eminentemente frágil, controversa e questionável. Para mais, o cientista moderno, em absoluto, terá que ter sempre presente que abdicou, por opção própria, do metafísico no primeiro dia em que se decidiu a trabalhar com ferramentas científicas modernas.
Deixemos a linguagem dogmática para a religião, que é a única que, por definição, a pode exercer com autoridade. Esperemos que os neo-darwinistas possam encontrar a calma e a lucidez para poderem efectuar verdadeiro trabalho científico, ao invés de promoverem agendas anti-religiosas.
Por outro lado, esperemos que os criacionistas do séquito de George W. Bush, com as suas agendas fanáticas bem preenchidas, não façam mais estragos a esta já delicada situação.

Bernardo

Sem comentários: