sexta-feira, 9 de março de 2007

Albino Aroso

Antes de principiar, convém ter bem presente alguns pontos essenciais. As críticas que se seguem são ao quadro intelectual defendido pelo Dr. Aroso, e não à sua pessoa. Infelizmente, poucos conseguem fazer a distinção entre a ideia errada e a pessoa que a defende. Pouco me interessam as críticas pessoais ou a depreciação de uma pessoa em concreto. O que tem interesse é o apontar dos erros intelectuais que certas pessoas defendem, sobretudo quando tais pessoas alcançaram um elevado estatuto de reconhecimento social. O perigo de situações destas é nítido: quanto mais elevado o estatuto e o reconhecimento social, maior a responsabilidade de tais pessoas, e mais gravosos e danosos se tornam os seus erros intelectuais.

O Dr. Albino Aroso ganhou o Prémio Nacional de Saúde. Só a sua idade e carreira em prol da saúde obrigam a um respeito à sua pessoa. Não obstante, ele defende uma série de ideias erradas acerca da vida intra-uterina e do aborto que merecem destaque. Evidentemente, este texto é uma minúscula crítica a uma entrevista em concreto, e não tem a pretensão de abarcar toda a acção intelectual do Dr. Aroso nesta matéria.

Trata-se de um artigo do Jornal de Notícias, datado de 13 de Janeiro último. Irei comentá-lo por trechos...

«Dr. Albino Aroso: Aborto é uma coisa morta, é aquilo uma mulher elimina espontaneamente, ou que é provocado, e que sai do útero, morrendo cá fora. Nós não estamos a discutir isso - estamos a discutir uma coisa extremamente simples, que é saber se a sociedade portuguesa deve continuar, ou não, a considerar a interrupção voluntária da gravidez em início (aquela em que a maior parte dos cientistas considera não haver ainda um ser humano) um crime.»

Duas falsidades:

a) A "maior parte" dos cientistas (belo rigor estatístico) não tem problemas em ver aquele ser como humano; o probema não é o de saber que se trata, biologicamente, de um ser humano: esse problema não existe, porque tal ser só pode ser humano; o problema está no estatuto ético desse ser, saber se tal ser humano tem o mesmo estatuto ético que tem um ser humano nascido ou numa fase mais avançada da gravidez; um pouco de rigor ajuda sempre;

b) O referendo não era, seguramente, para apenas despenalizar; esta era uma das várias consequências, sendo as restantes: legalizar o aborto (o aborto poderia ter sido reduzido de crime a contra-ordenação, mas foi passado a acto legal), e liberalizar o acesso ao aborto (mediante a prestação subsidiada de serviços abortivos aos utentes do SNS); mentir é feio.

«Entrevistador: O que está em causa no dia 11 de Fevereiro (data do referendo) não é também saber quando começa a vida humana?

Dr. Albino Aroso: No mundo civilizado, há dois tipos de mentalidades. Nos EUA encontramos os criacionistas, que acreditam que Deus criou tudo como está. Ou seja a vida humana começa na fecundação.»


Este é um perfeito e paradigmático exemplo da falácia ignoratio elenchi, ou seja, em português corrente, "fugir do assunto". A resposta nada tem a ver com o início da vida humana nem com a sua definição científica ou ética. A resposta dada reflecte uma série de coisas:

a) Visão simplista das teorias criacionistas como sendo uma só coisa: ignorância acerca destas várias teorias e das enormes diferenças entre elas;

b) Transformação do aborto numa questão de base religiosa: clara falácia, porque há argumentos contra o direito ao aborto que não invocam razões religiosas;

c) Preconceito anti-americano: há criacionistas em várias partes do globo;

d) Falta de coerência lógica: mesmo que os criacionistas fossem todos como descrito pelo Dr. Aroso, não se percebe esta conclusão partindo dessa premissa: "Ou seja a vida humana começa na fecundação"; a conclusão está certa, mas não tem nada a ver com a premissa.

«Entrevistador: Mesmo sem acreditar em Deus não é possível acreditar nisso?

Dr. Albino Aroso: Entre a fecundação e a chegada ao útero, 30 a 40% dos embriões iniciais desaparecem. São vidas humanas que se perdem, alguém comunica à sociedade que se perderam essas vidas humanas?»


Outro belo exemplo do uso da ignoratio elenchi. Por favor, alguém pode fornecer ao Dr. Aroso um manual rudimentar de Lógica?
A pergunta era bem clara: será que não se pode defender que a vida humana principia na fecundação sem invocar argumentos religiosos? A resposta deveria ser "sim" ou "não". Que responde o Dr. Aroso? Desvia o tema, não responde, e termina devolvendo uma pergunta de retórica. Deveria ser evidente que quem defende que a vida humana principia na fecundação também defende que os abortos espontâneos (naturais) são vidas humanas que se perdem.
Também seria útil dar ao Dr. Aroso um manual de Ética, bastaria um rudimentar. Pelos vistos não sabe, ou não quer, distinguir entre estas duas situações:

a) aborto espontâneo ou natural: problema exclusivamente médico ou biológico; não tem consequências éticas, nem tem qualquer peso ético porque é o resultado de um processo natural que não foi provocado por nenhum agente humano; está fora do alcance da Ética;

b) aborto provocado: resultado decorrente de uma acção humana propositada; tudo o que tem a ver com a conduta humana, com o ethos, pertence à esfera da Ética e deve ser avaliado e classificado nessa esfera.

«Entrevistador: É católico?

Dr. Albino Aroso: Sou. Porquê?»


Parte humorística da entrevista.
Para o Dr. Albino Aroso, a incoerência intelectual, pelos vistos, não é um problema para si. Pelos vistos, tolera bem a coexistência no seu intelecto de conceitos, convicções e noções totalmente incompatíveis entre si. Será que tal incoerência pode alguma vez dar bom resultado, em termos de afirmações intelectualmente válidas nestas matérias? É certo que só pode dar mau resultado...
É impossível a coexistência coerente, num mesmo intelecto, de uma doutrina católica completa e genuína, juntamente com a defesa do aborto provocado. Isto é matéria de facto, e não de opinião.

«Dr. Albino Aroso: A Sociedade Americana de Obstetrícia e Ginecologia distribui por todos os membros, há uns anos, uma frase que dizia assim "A vida é um processo contínuo". Isto ninguém pode discutir. Do ponto de vista científico, não é possível dizer quando se inicia a vida humana, somente do ponto de vista religioso, moral ou teológico. Aqui está um problema fundamental de que as pessoas têm que ter consciência. Quando se discutiu na Europa, sobretudo em França, este problema, os cientistas concluíram que não era vida humana o embrião. Ou seja: não seria crime interromper essa vida enquanto não estava formado o sistema nervoso central. Que valor tem a eliminação espontânea?»

O Dr. Albino Aroso insiste em confundir Biologia com Ética. Biologicamente, o zigoto já é um ser humano totipotente, dotado de todo o genoma que faz dele um espécime Homo Sapiens. Darwin, nada suspeito em matéria de religião, não teria dúvidas a este respeito... Outra questão mais melindrosa diz respeito ao estatuto ético do zigoto, do embrião, do feto. Mas, enfim, nem vale a pena prosseguir, porque a confusão do Dr. Aroso está num nível anterior, está em não ser capaz de distinguir o carácter biológico humano do embrião do carácter ético humano do mesmo.

«Entrevistador: No seu entender, tem o mesmo que a eliminação voluntária?

Dr. Albino Aroso: Nós seremos um país moralmente mais avançado que os países nórdicos, que já tiraram da sua legislação a incriminação das mulheres? Estamos numa fase em que ainda aceitamos que Deus é o responsável pelas gravidezes, ou isso é totalmente da responsabilidade das mulheres?»


De novo, ignoratio elenchi. Parece que o Dr. Aroso procura bater um recorde no uso deste tipo de falácia em poucas frases. O Dr. Aroso insiste em não responder à pergunta ética que lhe é feita, e que é bastante simples e objectiva. Eticamente, é ou não o mesmo um aborto provocado ou um não provocado? A resposta deveria ser clara: são coisas distintas. Onde não há acção humana (aborto espontâneo) não há problema ético.
O Dr. Aroso invoca a sempre presente protecção dos irmãozinhos mais velhos nórdicos, esses que estão sempre à frente em tudo, a julgar pela fé popular e pela opinião pública do "diz que disse". A frase final sobre a responsabilidade é uma perfeita asneira: nenhum crente inteligente diz que a gravidez é responsabilidade de Deus. Deus não obriga ninguém ao acto sexual, pelo que toda e qualquer gravidez é sempre responsabilidade dos progenitores. Por isso mesmo, a mulher que mata ou pede que lhe façam um aborto deve ser responsabilizada pelo erro ético desse acto, que termina com a vida de um ser humano com direito a ela.

«Entrevistador: Em que fase estamos?

Dr. Albino Aroso: Depende. Nós dizemos uma coisa, mas fazemos outra. As sociedades fazem hoje, rigorosamente, tudo aquilo que é da sua responsabilidade, não fazem caso nenhum da intervenção de Deus. Somos totalmente responsáveis por aquilo que fazemos.»


Esta resposta é incompreensível. O conceito de responsabilidade também está presente quando a Justiça tem que lidar com um assaltante ou com um homicida. Ambos têm responsabilidades sociais e humanas. Ninguém as nega. Não se entende como é que este discurso em prol da responsabilização (que é louvável enquanto tal) pode alguma vez legitimar dar a morte a um feto, um embrião ou um zigoto humano. Pelo contrário, a interdição da destruição de uma gravidez deveria ser uma clara marca de que o acto sexual deve ser responsabilizado. Se os meios para evitar tal gravidez falham, como se costuma dizer, "azar"! Há que ser responsável e aceitar a gravidez como um facto. O aborto nunca será um método contraceptivo ou de regulação da gravidez, porque a gravidez já é um facto. E "interrompê-la" é só uma forma maciazinha de dizer "exterminá-la".

«Entrevistador: Somos o quarto país do Mundo com a mais baixa taxa de mortalidade infantil.

Dr. Albino Aroso: Tudo isso tem os seus antecedentes. Estamos a falar no planeamento familiar

Entrevistador: Planeamento familiar que a associação que o senhor criou lançou em 1969…

Dr. Albino Aroso: A primeira consulta pública e gratuita foi dada no Hospital e S. António, no Porto, em 1969. Nessa altura não era ainda possível anunciar contraceptivos, nem receitar com essa finalidade»


O Dr. Aroso parece insinuar que a censura moral aos contraceptivos tem a mesma razão de ser da censura moral ao aborto provocado.
Isto é um estratagema clássico: considerar a moralidade da contracepção como sendo equivalente à moralidade do aborto. É certo que a moral religiosa considera imoral o recurso à contracepção artificial, e não vale a pena negá-lo porque as coisas são assim e devem ser assim. Mas também é certo que o erro moral de abortar é dramaticamente mais grave que o erro moral de usar um método contraceptivo:

a) Quando uma pessoa usa um método contraceptivo, aos olhos da moral católica (por exemplo), está a cometer um acto imoral porque distorce a finalidade última da relação sexual; mas seguramente, não mata ninguém nem acomete contra a vida de ninguém: quando muito, enfraquece a sua fortaleza moral;

b) Quando uma pessoa aborta ou ajuda a abortar, aos olhos de uma moral universal (portanto, neutra em termos religiosos), está a cometer um acto imoral porque mata um ser humano com direito a viver.

«Entrevistador: Como é que se fazia?

Dr. Albino Aroso: Era possível receitar os mesmos produtos para regularizar os ciclos. Todas as mulheres tinham ciclos irregulares. O que nós queríamos é que as mulheres tivessem os filhos que elas quisessem ter, e quando pudessem. Nós dizíamos que a mulher tinha o direito - e não o dever - de ter os filhos. A sociedade evoluiu rapidamente e a mulher ascendeu rapidamente, por via dessa política social, a todos os lugares públicos. A gravidez torna-se um problema extremamente complicado para a mulher que trabalha, que estuda e que sai de casa às oito da manhã.»


Bom, esta é a clássica retórica feminista, e não vale a pena repisar mais sobre ela. A mulher realiza-se, certamente, de muitas formas para lá da maternidade. Mas se lhe dão o falso direito a matar, isso é o mesmo que uma mulher tentar negar (porque não consegue fugir dela) a sua maternidade enquanto mulher grávida. Isso é contrasenso. A mulher grávida já é mãe. O aborto é um atentado contra a essência da mulher enquanto mãe. Se a mulher, hoje em dia, tem menor disponibilidade para a maternidade, isso não pode ser visto como uma coisa boa: é uma coisa má, que traz consequências nefastas para todos. Está na altura de atirar para o lixo a retórica feminista extremista, e procurar regressar ao simples bom senso. Sem mães, não há crianças, e sem crianças, não há Humanidade. Por isso é que dá algum jeitinho, enfim, é cómodo, que o conceito de mulher não esteja assim tão radicalmente separado do conceito de mãe.

«Entrevistador: Concorda com o referendo?

Dr. Albino Aroso: É-me indiferente. A questão é se isto é problema essencialmente feminino, porque não ouvir só as mulheres? Só que a maior parte das mulheres é contra as mulheres. E os homens que são normalmente responsáveis, colocam-se de fora e ainda são capazes de culpar as mulheres. Convém não esquecer que somos o país educacionalmente mais atrasado da Europa civilizada. Não admira que só agora estejamos a repetir o referendo que se fez em 1998 em que o "Sim" perdeu. Em relação a esta despenalização, defendo a existência, à semelhança do que faz a Alemanha, de um interrogatório à pessoa que quer interromper a gravidez, no sentido de saber por que é que ela engravidou: é culpa do Estado, é culpa da sociedade, não há o fornecimento atempado de contraceptivos, a culpa é do médico, o que é que falhou?»


Tudo isto é uma embrulhada de asneiras:

a) O problema do aborto não é "essencialmente feminino", enquanto não se provar que o estatuto ético da vida humana intra-uterina é rigorosamente zero; onde está a prova, a demonstração científica e filosófica, Dr. Aroso?

b) «A maior parte das mulheres é contra as mulheres»: nem vale a pena comentar este disparate, puro flatus voci, uma frase de guerrilha, precipitada, sem conteúdo intelectual, puramente gratuita, absurda e indemonstrável;

c) "Os homens colocam-se de fora": veremos agora, com o aborto legal, se os homens não o irão usar para impor violência pró-aborto às suas mulheres, filhas, namoradas, etc.;

d) "Somos o país educacionalmente mais atrasado": a mesma óptica miserabilista, que considera que tudo, rigorosamente tudo, o que é estrangeiro é bom; seja a técnica, sejam os serviços sociais, seja a ética, tudo o que é estrangeiro é bom e tudo o que é nacional é mau; nova frase gratuita, e que nada traz ao debate ético do aborto;

e) "Não admira que só agora estejamos a repetir o referendo...": de novo, o mito não demonstrado, e omnipresente, do Progresso, ou seja, a ideia insensata de que as mudanças (boas ou más, é indiferente) devem ser feitas quanto antes, para que permitam acelerar essa grande coisa que é o Progresso; curiosamente, alguns países pioneiros em matéria de aborto livre (o caso mais flagrante é o dos EUA) estão a rever as suas decisões de há trinta anos nesta matéria; mas o progresso dos EUA nesta matéria, ou seja, o recente repensar de restrições ao aborto legal (que está a ser proposto mesmo pelos Democratas norte-americanos) agora, já não interessa, certo, Dr. Aroso?

A sua defesa final do "interrogatório" à mulher é verdadeiramente notável, e é o corolário de uma entrevista intelectualmente deprimente. É esta uma das versões do "aconselhamento prévio" de que tantos defensores do "sim" falaram? Repare-se a ironia da coisa: o real erro ético (abortar, matar) não é problemático para estes senhores, porque no final do "interrogatório", o senhor doutor lá vem com os forceps ou com as pastilhas de RU-485. O aborto não está em causa, repare-se! É como interrogar uma criança para lhe perguntar quem fez a asneira, prometendo um rebuçado no fim.
Curiosamente, a "asneira" parece ser "engravidar", que é uma função biológica natural e normal.
E mais curiosamente ainda, o "rebuçado" parece ser "abortar", que é uma aberração ética, que viola a mais básica e rudimentar deontologia médica, que priva um ser humano da sua vida futura, e que mata psicologicamente a mulher que se submete a tal intervenção grotesca e bárbara.

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