terça-feira, 21 de agosto de 2007

Raptar o "papa de Hitler"?



O jornalista Dan Kurzman, correspondente do The Washington Post, foi, em 1970, o primeiro a entrevistar o SS Karl Wolff (1900-1984), que naquele ano tinha sido libertado da sua pena de prisão, tendo regressado à sua casa em Darmstadt.

Kurzman acaba de ver publicada (em Maio último) a sua mais recente obra A Special Mission: Hitler's Secret Plot to Seize the Vatican and Kidnap Pope Pius the XII, um refrescante livro que conta com bastantes detalhes o plano delineado por Hitler em Setembro de 1943 para raptar o Papa Pio XII, assassinando no processo toda a Curia romana.

O General Karl Wolff, ajudante de Heinrich Himmler, uma das figuras de proa das SS, recebeu de Hitler a incumbência de executar esta terrível missão. Wolff, de forma oportunista, procurou protelar durante vários meses estas ordens de Hitler, acabando por contar mais tarde todo o plano ao Papa Pio XII, de forma a aparecer aos olhos do Papa, e consequentemente dos vencedores Aliados, como amigo da Santa Sé.

Wolff, suspeitando que a Alemanha iria perder a guerra, jogou a carta certa num jogo arriscado: pelo seu papel pacífico relativamente à Santa Sé, e sobretudo pelo facto de ter entregue as forças armadas sem protesto aos Aliados na Primavera de 1945, escapou ao cadafalso, tendo recebido uma curta pena de prisão em Nuremberga.

Desobedecendo a Hitler, numa série de actos que se qualificariam de alta traição ao Terceiro Reich, Karl Wolff evitou o que seria a repetição histórica de mais um atentado contra a integridade física de um pontífice, algo que já tinha sucedido no passado, bastando recordar os actos de líderes como Napoleão e Filipe IV de França.

O mais curioso neste recente livro de Kurzman, que se lê como um policial de espionagem (contudo, bem documentado e referenciado), é a forma como esta documentação trazida à luz do dia ridiculariza de forma trágica a tese de um John Cornwell, de que Pio XII seria "o Papa de Hitler".

Há dois momentos históricos, infelizmente pouco conhecidos, que resumem o absurdo da tese do "papa de Hitler":

a) o plano de Hitler para assassinar toda a Curia e raptar (ou matar) Pio XII, revelado magistralmente nesta obra de Kurzman; porquê todo este ódio de Hitler por aquele que, segundo Cornwell, seria "o seu Papa"? Responder a esta questão implica mergulhar na verdade histórica, o que nem sempre é fácil nem desejável para certos fazedores de opinião;

b) a conspiração de altas figuras da Oposição alemã a Hitler para depor ou assassinar o ditador, que terminou em fatídico falhanço no Outono de 1939, conspiração na qual o Papa Pio XII, jogando um jogo tremendamente arriscado, fez não só de patrocinador mas também de "pombo-correio", numa cadeia de comunicação complexa, que percorria linearmente todas estas figuras:
- os líderes da Oposição alemã a Hitler (Beck, Canaris, Halder, etc.)
- o "emissário" da Oposição no Vaticano, o Dr. Joseph Muller
- o padre jesuíta Robert Leiber (homem da confiança pessoal de Pio XII)
- o Papa Pio XII
- o embaixador do Reino Unido na Santa Sé, D'Arcy Osborne
- o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Lord Halifax

A cadeia de comunicação seguia, depois, o caminho inverso, de regresso à Oposição na Alemanha. Note-se que nenhuma peça de informação acerca desta conspiração atravessava a cadeia de comunicação da Oposição em direcção ao Foreign Office, ou na direcção inversa, sem passar pelas próprias mãos de Pio XII!

Mais detalhes sobre este segundo ponto surgem explanados na obra densa e académica de Harold C. Deutsch, The Conspiracy Against Hitler in the Twilight War (1968, University of Minnesota Press). Deutsch explica bem como o Santo Padre, temendo os enormes riscos de tal operação, quis reservar estas tarefas secretas para si mesmo e para menos de meia dúzia de confidentes. Anos mais tarde, após a Guerra, o padre Leiber viria a dizer que o Papa Pio XII "fora longe demais"!

Encontrar o pontífice Pio XII na cadeia de uma conspiração para depor o ditador Hitler é algo de tão exótico e surpreendente que nos faz ver com outros olhos as teses propagandísticas daqueles autores recentes que querem convencer o mundo de que Pio XII, o maior inimigo de Hitler, era, de facto, uma espécie de "Papa de Hitler"...

As conclusões finais acerca de toda esta polémica só serão sanadas (aos olhos dos especialistas, visto que na opinião pública, o mal já está feito e é quase irremediável) quando finalmente toda a documentação da Santa Sé relativa a este período estiver catalogada e acessível aos investigadores, algo que ainda poderá demorar mais alguns anos.

Sem comentários: