terça-feira, 27 de novembro de 2007

Mulheres, cristianismo e honra

Mário Soares, o actual presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, teceu hoje algumas considerações curiosas acerca de religião, mais específicamente das religiões judaica e cristã, fazendo algumas interpretações pessoais acerca do Antigo e do Novo Testamento.

O texto completo da notícia pode ser lido aqui.
Também lá estava Manuela Augusto, presidente do Departamento Nacional das Mulheres Socialistas, que abriu o colóquio "Mulheres na Religião".

Citando passagens avulsas dos livros sagrados, diz Soares a certa altura:

Para demonstrar a «pouca estima que as religiões têm pela mulher», Soares recitou uma das mais famosas passagens da Bíblia: «Não cobiçarás a mulher do próximo...» e, depois de uma pausa, continuou ... «nem o escravo, o boi, o burro, nem nada que lhe pertença»
(...)
Para Mário Soares, que é o presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, este mandamento sagrado demonstra a "posição de inferioridade" da mulher no mundo da religião, que a iguala ao "boi e ao burro".


Não é preciso grande esforço para ler isto correctamente.
Apesar do final da frase, "nem nada que lhe pertença", falamos de pertenças muito diferentes.
Podemos dizer, sem qualquer risco de excesso machista, que a mulher pertence ao seu marido.
Como podemos dizer, sem qualquer risco de excesso feminista, que o marido pertence à sua mulher.
São dom eterno de um para o outro.
É assim que ensina a mais rudimentar teologia cristã.
E no entanto, o matrimónio é entre homem e mulher, e não entram na equação bois ou burros...
Este mandamento, distorcido por Soares, diz afinal uma coisa bem simples, que ele não compreendeu (ou não quis compreender):
o matrimónio é demasiado sagrado e sério para ser destruído por pessoas de fora.
O decálogo, entre outras coisas, proíbe a cobiça de pertences, é certo, mas proíbe a pior cobiça de todas: cobiçar a "cara-metade" do próximo!

É, sem dúvida, curiosa a leitura muito pessoal que Soares faz deste trecho, e de outros.
Deixa também por explicar um tremendo paradoxo: como é possível que, sendo as mulheres a larga maioria dos fiéis, elas aceitem em larga medida, e voluntariamente, jogar este pretenso jogo judaico-cristão do "escravo", do "boi" e do "burro"...

Há várias possibilidades:

a) as mulheres crentes em geral não sabem ler
b) as mulheres crentes em geral sabem ler, mas desconhecem a Bíblia e nunca leram os trechos indicados
c) as mulheres crentes em geral leram os trechos e aceitam a comparação que é feita
d) as mulheres crentes em geral leram os trechos e não aceitam a comparação que é feita
e) os textos em questão não devem ser lidos através das lentes de Mário Soares e de Manuela Augusto

Eu cá voto apenas na última alínea!
E parece que os nossos Mário Soares e Manuela Augusto votariam nas primeiras quatro alíneas!
Curiosamente, temos que escutar Mário Soares, e a sua colega de evento, Manuela Augusto, para vermos duas pessoas a infantilizarem profundamente as mulheres crentes, e deste modo, a faltarem-lhes ao respeito.
Ao suporem que as mulheres crentes não sabem que o decálogo as compara a escravos, bois e burros, chamam-lhes ignorantes ou iletradas.
Ao suporem que as mulheres crentes aceitam serem comparadas a escravos, bois e burros, chamam-lhes submissas e de masoquistas.
Ao suporem que as mulheres crentes não aceitam serem comparadas a escravos, bois e burros, e nada fazem de eficaz de forma a contrariar tal situação, chamam-lhes ineficientes ou passivas!

Pois, segundo a leitura errada que ambos fazem do texto sagrado, as mulheres crentes são "escravas" ignorantes num mundo de homens!

Para ler qualquer texto, basta saber ler.
Mas para o interpretar, há que ter alguma competência, alguma formação mínima, algum contexto.
Dá jeito ter coisas como catequese, leitura, estudo, seminários, formação teológica, vivência pessoal da fé e da religião, e outras coisas que nos impedem de dizer tristes asneiras sobre religião.

É caso para perguntar quais são as qualificações que se exigem a um presidente da Comissão da Liberdade Religiosa...
Talvez... perceber de religião?
A leitura primária feita por Soares faria rir um adolescente de Seminário, ou uma jovem na catequese, que antes dos quinze anos já deve saber a elevadíssima importância da Mulher na religião cristã, e já deve saber que a Bíblia, EVIDENTEMENTE, não equipara a mulher a um escravo, a um boi ou a um burro...

Diz ainda Soares:

«Se a lição que se pode extrair do Antigo Testamento é a de que 'devemos evitar as mulheres', no Novo Testamento a mulher surge como 'objecto vergonhoso'».


Algo me deve ter escapado, porque nunca recebi tais lições...
Talvez tema para uma bela lição sobre religiões judaico-cristãs para Soares leccionar, numa qualquer Faculdade de Teologia, como Doutor "honoris causa"?

Manuela Augusto ainda nos reserva esta observação:

"Manuela Augusto lembrou ainda que, apesar de as mulheres constituírem a maioria dos fiéis, estão «afastadas dos lugares de honra e glória», sendo-lhe por vezes «vedada a celebração do culto religioso» e até «proibido partilhar com os homens o mesmo espaço de culto»." (negrito meu)


O caminho do sacerdote é um caminho de serviço, e não de honra.
É certamente um caminho honrado, porque é de serviço ao outro e a Deus (que serviço mais elevado existe?), mas não existe para lhe serem prestadas honras ou prestígios.
Ser sacerdote cristão é, inegavelmente, algo de honrado.
Mas resta por demonstrar de que forma é que a honradez de um sacerdote é superior à de uma Santa Rita de Cássia, de uma Santa Clara, de uma Santa Isabel, de uma Santa Teresinha do Menino Jesus, de uma Santa Catarina, de uma Santa Teresa de Ávila,
entre tantas e tantas outras, e sobretudo de uma Santa Maria, Mãe de Deus!

Toda esta comparação entre as "honras" dos sacerdotes e as das mulheres é uma patetice!

O sacerdote representa, na Eucaristia, a própria pessoa de Cristo.
Ora todos sabem que Cristo veio ao Mundo no género masculino. Logo, o sacerdote representa melhor a figura de Cristo se for do mesmo género, ou seja, masculino. É uma contingência do cristianismo, visto que o nosso Deus veio ao Mundo nesse género. Não é porque a mulher não é digna do sacerdócio que não o pode exercer. Não falta à mulher qualquer faculdade ou competência para tal, excepto o facto de não ser do mesmo género escolhido por Cristo para incarnar. É que Cristo não veio ao Mundo como mulher, veio como homem.

E, certamente, não há nessa decisão divina nenhuma vontade em a menosprezar ou minimizar... Nascendo em corpo humano, Cristo, teria que vir ao Mundo num dos géneros: homem ou mulher.

E quantas vezes é preciso repetir que foi uma mulher, Santa Maria Madalena, a primeira testemunha humana da Ressurreição?
Que foi ela quem trouxe a Boa Nova aos discípulos em primeira mão?
Se soubermos que a ressurreição de Cristo é o evento maior da fé cristã, e se soubermos que sem o "fiat voluntas tua" de Maria, Cristo não teria nascido, entenderemos um pouco melhor qual é o lugar de honra que Cristo consagrou, e o cristianismo consagra, à Mulher.

Para terminar, a expressão "lugar de glória", proferida por Manuela Augusto naquele contexto, é uma tragédia: lugar de Glória, no Cristianismo, é reservado a Deus, e a Deus apenas!

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