quinta-feira, 31 de março de 2011

O Quinto Evangelho?

Há poucas coisas, dentro do cristianismo, que gerem mais polémica e atenção do que as discussões acerca de "novos evangelhos" para além dos quatro canónicos (Mateus, Marcos, Lucas e João). A motivação para esta polémica tem dois sabores, consoante as convicções do cristão que nela se envolve:

a) o cristão coerente que esteja pouco informado acerca das origens do cristianismo fica assustado, e preocupa-se com a eventual possibilidade de o Novo Testamento não ser verídico, ou de existirem fontes cristãs mais antigas (e presumidamente mais fidedignas) que o invalidassem ou colocassem em causa; este cristão está, obviamente, interessado na credibilidade do Novo Testamento, e assusta-se quando surge algo que parece colocá-la em causa;

b) o cristão incoerente e o não cristão, por outro lado, mais ou menos informados acerca das origens do cristianismo (desde o ignorante ao académico), procuram o oposto: enfraquecer a doutrina cristã; uma forma óbvia de o fazer é tentar minar a credibilidade do Novo Testamento.

Na história recente do criticismo neotestamentário, nada agitou mais as águas do que o dito "Evangelho de Tomé". Para toda uma horda de adversários do cristianismo ortodoxo, o Evangelho de Tomé é tido como "a fonte", ou seja, como o local onde podemos encontrar os vestígios de um cristianismo genuíno, antes de ele ser "estragado" pela ortodoxia da Igreja.

O centro da polémica é, como é típico neste tema, a questão da datação. E, posto de forma simples, se o Evangelho de Tomé fosse anterior aos Evangelhos canónicos, então estaria mais perto da "fonte", ou seja, dos acontecimentos do final da vida de Cristo e logo após a Sua morte. Alguns teólogos liberais, como os do The Jesus Seminar, chegaram ao ponto de chamar ao Evangelho de Tomé o "quinto evangelho", publicando mesmo versões "actualizadas" do Novo Testamento, com o de Tomé anexado aos quatro canónicos.

Ora, por muito que isso desanime os adversários do cristianismo ortodoxo, o Evangelho de Tomé é um texto tardio, bastante posterior aos textos canónicos do Novo Testamento. O Evangelho de Tomé pertence, seguramente, ao século II d.C., e com grande probabilidade, data do final desse século. O golpe fatal nas fantasias em torno do Evangelho de Tomé foi desferido recentemente por via da obra do académico norte-americano Nicholas Perrin (Wheaton College, Illinois). Perrin demonstrou que o Evangelho de Tomé tem origem na tradição síria do segundo século da nossa era, o que destrói de vez as fantasias que pretendem fazer deste texto uma fonte pré-canónica do primeiro século.

(última página do Evangelho de Tomé, onde se lê o título: "peuagelion pkata tomas"                   - Códice II de Nag Hammadi)

O Evangelho de Tomé, um conjunto de dizeres ("lógia" no plural, "lógion" no singular) gnósticos atribuídos a Jesus, é hoje conhecido na sua versão presumidamente completa graças às descobertas arqueológicas feitas no Egipto, em Nag Hammadi, em 1945, que trouxeram à luz um texto escrito em copta, contendo o dito Evangelho. Esse texto copta condizia com certos excertos dos papiros de Oxirrinco (texto em grego), descobertos no Egipto, em 1898. A tese que apaixonou os adversários do cristianismo ortodoxo era a de que os "lógia" constantes no Evangelho de Tomé revelavam um Jesus gnóstico e radicalmente distinto do Jesus canónico. Algures no meio da sanha anticristã de alguns académicos encontramos algumas pérolas de contradição, como a adesão de investigadoras feministas ao sonho de que Cristo seria um mestre gnóstico proto-feminista, casado com Maria Madalena, e anunciador da "religião da Deusa", pese embora o duro facto de que os gnósticos tinham uma ideia muito negativa da mulher, pelo seu papel biológico na reprodução (os gnósticos repudiavam a reprodução humana, vista por eles como o perpetuar da escravidão da carne, que impedia as almas "puras" de se libertarem).

Perrin não foi pioneiro na tese da origem síria deste Evangelho, mas tem o mérito de a ter demonstrado de forma irrefutável. Perrin fez uma comparação entre o Evangelho de Tomé (texto copta) e o texto sírio do Diatessaron (c. 160-175) da autoria de Taciano, o Assírio (c. 120-180), discípulo de Justino Mártir, em Roma. As semelhanças são notáveis, e permitem inferir uma relação inequívoca entre o Diatessaron e o Evangelho de Tomé. Perrin fez a experiência de reverter o texto copta do Evangelho de Tomé para grego e para sírio, e as semelhanças saltam à vista, sobretudo na tradução para sírio: 89% dos "lógia" surgem ligados em ambos os lados com excertos do Diatessaron:


Pela sua importância, deixamos aqui uma parte do trabalho de Nicholas Perrin acerca deste tema:
PS: Aconselho a leitura do capítulo 10, "How scholars fabricate Jesus", da autoria do académico Craig Evans, da obra Contending with Christianity's Critics, editada por Paul Copan e William Lane Craig, Nashville, Tennessee, 2009. Graças à leitura deste capítulo, pude dar-me conta do valor do trabalho feito por Nicholas Perrin em torno do Evangelho de Tomé.

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